domingo, janeiro 21, 2007

A engenharia civil e o estado mínimo

Ainda sobre a tragédia do metrô, segue artigo muito interessante do Prof. Waldemar Hachich, da EPUSP.

Qualidade tem preço e a falta dela também...
Waldemar Hachich*

Será que os indivíduos que contratam obras por mínimo custo global, em regime "turn key", utilizam esse mesmo critério para escolher os cirurgiões que tratarão das suas mazelas cardíacas? Em diversas instâncias, decisões cruciais para a nossa Engenharia Civil vêm sendo tomadas, nos últimos anos, por "gestores", com seus reluzentes mestrados e doutorados em "business" em Harvard, Stanford, London Business School, MIT, FGV, na sua esmagadora maioria absolutamente jejunos quanto às especificidades técnicas da Engenharia Civil.
Contratam "engenharia" da mesma forma que contratam, por exemplo, serviços terceirizados de limpeza. Tudo se resume à trivialidade do "business as usual". Gestores demais (e com remunerações pautadas pela área financeira), engenheiros civis de menos (e com remunerações de terceiro, ou quarto!, mundo). Em quase todas as decisões, excelência técnica viu-se subjugada pelo avassalador imperativo econômico-financeiro. Trabalhei, entre outras obras, na linha 1 (Santana-Jabaquara) do Metrô de São Paulo, na década de 70. Decisões de Engenharia eram então tomadas por engenheiros. Mais importante, a proprietária contratava, direta e independentemente, prospecções, projeto, empreiteiras e consultores.
As inevitáveis (e saudáveis) discussões entre esses protagonistas da obra, cada qual com sua posição independente, resultavam em melhor qualidade, mesmo frente a desafios então totalmente novos, como a escavação sob os edifícios da Rua Boa Vista, Pátio do Colégio, Caixa Econômica Federal, Palácio da Justiça, etc.). Seria ingênuo dizer que não houve acidentes, mas eram menos freqüentes e menos graves do que aqueles que temos testemunhado nos últimos anos.
A legislação (Lei 8666, por exemplo) e práticas contratuais ("turn key" por preço global mínimo, abrangendo prospecção, projeto, construção e monitoração) vêm sendo interpretadas e aplicadas, na contratação de serviços de Engenharia Civil, no sentido contrário ao da qualidade, no sentido de desvalorizar a excelência técnica. Há exemplos igualmente preocupantes em outras áreas. Alguém ainda se lembra da IATA e da época em que as tarifas aéreas mínimas eram estabelecidas por ela? Pois bem, desregulamentou-se tudo. E as estatísticas são inequívocas: aumentou o índice mundial de acidentes aéreos por horas voadas. Por que será?
Não se pode simplesmente esperar que o "mercado" regule tudo. Claro que acabaria regulando: as companhias de seguro passariam a cobrar mais caro, as empreiteiras passariam a cobrar mais caro (mas continuariam forçando a minimização de gastos com investigações e projetos), os projetos iriam ficando mais e mais conservadores (por medo e por falta de recursos para os projetistas fazerem estudos de fato), a sociedade iria pagando cada vez mais... e continuaria sem nenhuma garantia de redução do número de acidentes.
Essa meta exige valorização da excelência técnica, da qualidade. E qualidade tem preço. É preciso conscientizar a sociedade para o fato de que esse preço é inferior ao preço da falta de qualidade, ao preço de acidentes, de desperdícios, de desmoralização de uma engenharia civil que já foi reconhecida internacionalmente como uma das melhores do mundo. Urge explorar as melhores formas de aplicação da legislação, com eventual revisão das práticas contratuais das obras públicas. Mas liminarmente impõe-se o compromisso solidário dos profissionais e empresas de Engenharia Civil, suas associações e entidades de classe, com uma pauta de aderência estrita a critérios de qualidade.

*Professor titular da Escola Politécnica da USP; vice-presidente da ISSMGE para a América do Sul, ex-presidente e conselheiro da Asociação Brasileira de Mecânica de Solos (ABMS)

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