sexta-feira, janeiro 14, 2011

A folha de papel almaço

Para encerrar 2010, digamos, um ano bem atordoado, eu vou contar a minha saga com o Detran-SP.
Como eu quitei a dívida do meu carro, recebi a documentação do banco para realizar a transferência de propriedade. A propósito: fiz um leasing para aproveitar taxas de juros mais convidativas, lá pelos idos de 2008.
Recebi uma carta dando plena quitação da dívida, o recibo do certificado de registro do veículo, datado de 28 de outubro de 2010, com prazo para transferência até 28 de novembro do mesmo ano. Por fim, uma procuração do HSBC toda registrada em cartório, assim como o recibo, carimbado e rotulado para quem quisesse ver. O pacote veio lá de Curitiba, sede do banco.
Fui ao Ciretran aqui de Mogi Mirim perguntar o que era preciso para realizar a transferência, e o funcionário, carregando um belo distintivo da Polícia Civil pendurado como um colar, me mandou ao lado do balcão ler um mural que devia ter uns dez anos de existência, com os mesmos papéis que o inauguraram. Papéis velhos, amarelados, ditando regras para todos os procedimentos para o público.
Há quem vá me perguntar de cara: “mas porque você não foi ao despachante?”. A resposta é simples: depois do advento do Poupatempo, procurar os serviços de despachante se tornou um pouco ultrapassado! Essa maravilha da modernidade nos ensinou que somos capazes de resolver os nossos problemas com a máquina de papéis do Estado. Basta ter coragem, paciência, bom humor e muita, muita determinação!
Lendo os papéis amarelados, senti certo medo de não ser capaz de fazer aquilo. Formulário verde, formulário vermelho, siglas estranhas, papel almaço, decalques, taxas. Voltei ao balcão e perguntei qual formulário deveria adquirir: o verde ou o vermelho, quando tive a surpresa. O funcionário disse-me que esquecesse tudo aquilo, que fosse na internet, no site do Detran-SP, e estaria tudo lá, bem explicadinho, com formulários on line e tudo mais. Que maravilha! O mundo estava mudando mesmo! Ele ainda brincou: “o Detran quer acabar com os despachantes!” Deus te ouça!
E ele tinha razão. Lá no www.detran.sp.gov.br tinha tudo o que eu precisava. Fui navegando, respondendo as perguntas, e pop ups iam se abrindo e me levando ao que eu precisava. A regra era clara, bem explicadinha, e lá estava ele: o formulário on line! Tudo bem, se não é uma maravilha completa é quase, não vou negar. O problema é que era preciso escolher o tipo de formulário, então eu fiquei entre o dois e o cinco. Na dúvida, preenchi os dois!
Fui então ao banco pagar a taxa de transferência, sem antes checar o Renavan, para ver se eu teria alguma surpresa com multas ou algo do gênero, mas “nada consta”. Levei o roteiro para o banco, pois eu estava realmente determinada a fazer aquilo com minhas próprias mãos! Ali, na boca do caixa, depois de 25 minutos de espera, a moça teve algumas dúvidas, acho que ela nunca havia feito aquilo. Que saudade da boa e velha Nossa Caixa, que resolvia tudo conectada ao Detran, tudo pelo Internet banking! Mas depois que o Banco do Brasil assumiu as operações, o site ficou estranho, as conectividades pouco confiáveis, até que eu consiga aprender e ficar íntima novamente. Mas deu certo. Saquei as regras escritas, expliquei o que a moça deveria fazer e pronto. Paguei 126 reais de taxa de transferência e corri de volta para o trabalho.
Formulário impresso, taxa paga, chegou a hora dos decalques. Esperei o fim de semana, deixei minha filha pegar no sono, naquele cochilo do final da manhã, e fui para o carro. Abri as portas laterais, a tampa do motor, procurei, li o manual do usuário, o termo de garantia, o manual de primeiros socorros, e nada! Nada de encontrar o tal do número do chassi e número do motor gravados, para fazer o transfer. Pela primeira vez aquele carro me pareceu totalmente desconhecido! Quem é quem por aqui? Onde fica o motor?
Pois bem. Sem desistir, na segunda feira liguei na concessionária e pedi para o gerente da oficina me fazer a gentileza de tirar os decalques. Afinal, quem melhor que o fabricante para saber onde ficam os números oficiais?! Levei o carro até lá e esperei por dez minutos. Eles me chamaram de lado e disseram que, para tirar o decalque do número do motor seria necessário desmontar uma parte do sistema, pois o número não era facilmente visível. Sugeriu-me que eu fosse ao despachante, pois este teria os meios mais fáceis para obtenção daquela informação.
Bastante determinada, mas com pouco conhecimento de causa, resolvi ler um pouco. Voltei a internet e consultei as inúmeras resoluções do CONTRAN, pois na listinha impressa de regras estava escrito que, se o número do motor ou do chassi não fossem visíveis, era preciso obter os dados conforme resolução tal. Procura uma, que foi alterada por outra, que foi, por sua vez, alterada por outra, que, por fim, foi também alterada. Mas como a internet é maravilhosa, tudo é linkado, e nós podemos checar as informações com muita rapidez.
Cheguei ao ponto que precisava. Como meu carro é um daqueles cujo número do motor não é visível para fazer o decalque, é preciso fazer um laudo de vistoria de empresa credenciada pelo Detran. Muito bem, me pegou! Se isso é lei, então tem que ser seguida. Levei o carro no vistoriador, fui atendida por três jovens que devem ter sido contratados como aprendizes, de tão novinhos. Esses três jovens têm mais crédito oficial que eu, a dona do carro! Sessenta reais me custou para fazer o laudo, que demorou apenas quinze minutos para ficar pronto. Cabe uma perguntinha: porque o cara da concessionária, conhecendo tão bem o carro, não conseguiu aquilo que três pequenos trabalhadores conseguiram? Será que eles fizeram algo no motor que eu não deva saber? Muito bem, documento na mão, partimos para as cópias dos documentos pessoais. RG, CPF, comprovante de residência. Tudo no meu dossiê, dentro daquele envelope mandado pelo HSBC de Curitiba.
Pronta para ir ao Ciretran protocolar a documentação, resolvi dar mais uma lida nas regras. Claras regras. Pois estava lá: quando o recibo for autenticado por cartório fora do Estado de São Paulo é preciso reconhecer a firma do tabelião do cartório de origem. O quê? Li de novo! Era isso mesmo! Nem eu nem o tabelião de Curitiba temos fé pública. Aqueles três jovens têm, nós não! Meu Deus, pensei até em desisitir!!! Como pode algo assim? No Estado de São Paulo tabelião de fora não tem vez! Tinha que ir a um cartório reconhecer a firma do tabelião de Curitiba! Mas será que o tabelião de lá tem firma aberta nos cartórios de Mogi Mirim? Pois é, a gente sabe muito pouco das coisas. Isso tem até um nome certo, que eu não me lembro bem qual é. Mas os tabeliães têm suas fichas disseminadas, conforme a necessidade de cada cartório. Fui no primeiro cartório, que não tinha ficha daquele tabelião. Fui no segundo cartório, esperei cerca de 10 minutos e lá estava meu recibo autenticado na autenticação!
Essa foi uma das coisas mais engraçadas que vi nessa empreitada. Pensei que as piadas prontas partiriam do balcão do Ciretran, mas não!
Não vou negar a minha alegria ao sair do cartório. Meu dossiê estava montadinho, perfeito. Tudo bem que já estávamos no dia 18 de dezembro, e eu tinha exatos 10 dias para conseguir protocolar os documentos no balcão do Ciretran. Nada mais podia dar errado, mas eu estava pronta para qualquer acontecimento fora de hora. A gente faz isso, se prepara para o pior, para quando isto acontecer, a decepção não seja tão amarga!
Todos os documentos na mão, reli pela última vez as regras, e nada mais faltava. Segunda feira, dia 20 de dezembro lá estava eu no balcão, de cara com o funcionário do distintivo pendurado no pescoço. Entreguei os documentos: xerox dos documentos pessoais, recibo autenticado duas vezes, laudo de vistoria, recibo original do pagamento da taxa, formulários (o dois e o cinco). Errado! Volte três casas! Como naqueles jogos de tabuleiro, com os peões saltitando os quadradinhos conforme o número no dado. Ele me perguntou: “já fez a vistoria?” Sim, aqui está o laudo. “Não! A vistoria do Ciretran”, sim, aquela em que um servidor público atestará as condições do veículo. “Não!”. “Então amanhã, das 9h às 11h, você venha e faça a vistoria, e depois volte aqui para dar entrada nos documentos”. Só que no dia seguinte, e no seguinte, o trabalho me envolveu, e eu não consegui sair naquele horário. Só pude fazê-lo na 5ª feira, dia 23 de dezembro. Parei o carro ao lado do senhor que faz a tarefa, aguardei, ele pegou meu laudo de sessenta reais, carimbou, assinou, me devolveu, eu saí, virei a esquina, parei o carro e, muito orgulhosa, voltei ao balcão. Tudo pronto, passado e repassado, como mandavam as regras escritas.
Entreguei os documentos e ele olhou para mim, eu olhei para o distintivo dele pendurado no pescoço, e aquele nome me repreendia: Polícia Civil do Estado de São Paulo. “Onde está o papel almaço sem pauta?” “O quê?” “O papel almaço sem pauta, para fazer a capa do processo?” E o tempo voltou na minha cabeça, me levou de volta àquele mural amarelado, onde estava escrito: 1 folha de papel almaço sem pauta.
Eu consegui meu documento. O carro está em meu nome. Não tenho mais dívidas e acho que nunca mais vou fazer um leasing! Com a experiência até coordenei a transferência do carro do meu marido. A folha de papel almaço dele eu guardei, pois quem vai numa papelaria para comprar uma folha de papel almaço sem pauta? Eu comprei duas, com medo de errar! E sobrou uma para ele!

2 comentários:

Neto disse...

e viva a desburocratização e o Brasil

Luciana disse...

Renata, que coisa Kafkiana!!! Fiquei cansada só de ler! Eu já tinha desistido do carro no meio do caminho, e vendido o dito cujo com desconto. Que coisa absurda!!!

Vou publicar seu causo no meu blog!